Tabelinha de Conceitos
Este espaço vai ser destinado a colocar um resumo dos conceitos para não ter que ficar repetindo-os com tanta frequência.
Ps.: ia ser só um resumo rápido, por isso o nome "tabelinha", mas, né, não deu muito certo.
Sumário
1- níveis de capacidade linguística
1.1- afasia
1.2- linguagem comum/cultural
1.3- linguagem profunda
1.4- linguagem simbólica
1.5- linguagem anagógica
2- modalidades de cultura
2.1- cultura erudita
2.2- cultura popular
2.3- cultura acadêmica
2.4- cultura pop (industrial)
3- especializações do interesse
3.1- totalizante
3.2- explicação formal
3.3- explicação material
3.4- habilidade
3.5- tema
3.6- domínio da vontade
4- modalidades de forma da pesquisa e produção cultural
4.1- produção por tema
4.2- produção por área
4.3- produção por proposta
1- níveis de capacidade linguística
1.1- afasia: A ausência do ensino de linguagem humana fecha já boa parte das possibilidades humanas. Há dois subníveis: homem-fera e surdez congênita não-tratada.
Homem-fera: Um homem que não tenha sido criado, nos primeiros anos, em convívio com a sociedade humana acaba por imitar bicho. Depois da puerícia, ele fica com danos irreparáveis na cognição, impedindo-o de adquirir uma linguagem posteriormente.
Surdez congênita não-tratada: É um caso menos grave do que o homem-fera, porque, em geral, o surdo será criado em uma sociedade humana. Porém, não tendo a audição e, se não houver um diagnóstico cedo, associado ao ensino de uma linguagem não-oral (língua de sinais), boa parte do pensamento abstrato lhe será subtraída, tornando-o alguém que convive na sociedade humana, mas, por falta da linguagem, será um semi-retardado. Como o homem-fera, a ausência do ensino linguístico nos primeiros anos torna impossível reaver posteriormente a cognição desperdiçada.
1.2- linguagem comum/cultural: Por padrão, a maior parte dos seres humanos tiveram acesso à linguagem, portanto, não tiveram danos cognitivos permanentes como no caso da afasia. Porém, a maior parte também não foi apresentada aos níveis posteriores, e boa parte das confusões na cultura se dão pela incompreensão da própria posição e dos graus de razão acima e abaixo do seu que existem.
Os subníveis da linguagem comum vão do analfabeto ao PhD. Nessa minha perspectiva, eu estou considerando a subida nos subníveis apenas burocraticamente, ou seja, enquanto carreira, que pode ser seguida ainda que não haja um interesse profundo no assunto, mas sim apenas enquanto meio de trabalho. Nesse sentido, a diferença dos graus de formação que se adquire implicam apenas no acréscimo de possibilidades na sociedade, ou na cultura. Um analfabeto, por exemplo, fica restrito a todo o universo letrado da sociedade, uma imensa restrição de possibilidades. Já o letrado, ou seja, na nossa sociedade, alguém que passou pelo sistema escolar, tem acesso não só ao letramento, como também a conhecimentos padronizados, e também novas possibilidades de ascensão social (a escola de 1º grau leva a de 2º grau, que leva ao ensino universitário, de 3º grau). A cada novo grau adquirido, mais possibilidades de ação são acrescentadas, por ser algo cumulativo, ou seja, o graduado tem, em geral, todas as possibilidades de ação do analfabeto, somados também às do 1º, 2º e 3º grau.
A universidade abre mais possibilidades de emprego e também a assunção de cargos e toda uma área de conhecimentos que, se sua fração presente em livros é aberta para qualquer um, a parte laboratorial e prática só é aberta e permitido o acesso ao que adquire a respectiva permissão social, ou seja, o diploma universitário. Assim, imagino, fica mais fácil entender a ideia de acréscimo de possibilidades de ação social.
1.3- linguagem profunda: Linguagem profunda requer interesse profundo em alguma coisa. Esse interesse não pode ser matéria de ascensão social, sendo, ao contrário, facilmente um entrave no processo. Assim sendo, não me parece ser possível adentrar aos níveis 1.3, 1.4 e 1.5 da razão sem a identificação do próprio interesse e expansão das suas possibilidades. Frequentemente na vida de poetas, músicos ou demais artistas, filósofos etc. existe o dilema entre "viver uma vida boa" ou "viver a vida que a arte exige". É que o interesse não obedece a currículo, mas, ao contrário, é do interesse que nascem os melhores currículos, porque o sujeito busca aprofundar o máximo possível da sua habilidade e é ele quem pode, portanto, ordená-la, classificá-la, julgá-la.
Na ausência de pessoas com linguagem profunda, some da sociedade as pessoas capazes de julgar objetivamente o valor relativo de uma escolha em relação a outra (o Belo em oposição ao Feio), de modo que a sociedade cai em inúmeras problemáticas de relativismo, insolúveis, porque não possuem os critérios de julgamento.
A imagem arquetípica da linguagem profunda é o poeta que domina a linguagem e sabe o sabor de cada palavra e a julga na hora de compor um novo poema, com "precisão milimétrica". É ilustrado nas cartas de Rilke a um jovem poeta, por exemplo. Mas apesar de ser mais frequentemente reconhecida apenas na língua, ao que me parece, esse nível vale para qualquer outra habilidade: programação de computador, física, química, arquitetura, matemática, história etc. (esses casos eu conheci). Também parece ser possível aplicar a temas específico (como ocasiões de hiperfoco), e, ao que parece, mesmo a uma pessoa enquanto "tema", mediado por uma paixão profunda (para esse último caso, ver o caso de Rabia de Baçorá). A marca deste nível é, portanto, adentrar num tema por puro interesse, sem função externa, de modo que forme-se na mente do sujeito um mapa de possibilidades daquela habilidade. A nível de linguagem profunda, esse mapa só interessa enquanto aplicação da habilidade.
1.4- linguagem simbólica: Não sei bem o que move o interesse do nível 1.3 para 1.4, mas é aqui propriamente em que se pode falar de Filosofia no sentido clássico. Neste nível, as obras de Platão não são mais uma discussão sobre temas, menos ainda um recurso para usar como argumento de pesquisa, mas sim um conjunto de técnicas que são as regras que dirigem a discussão dos temas. Chama-se "linguagem simbólica" porque com exceção de Platão e Aristóteles, essa linguagem é frequentemente ensinada através de historias curtas que representam regras de organização de informação.
Falando de modo mais prático, linguagem simbólica é quando, com o acúmulo concreto ou potencial (por imaginação) de recursos de uma habilidade feitas por puro interesse, há um salto do interesse, de aplicar a habilidade para tentar organizá-la. Em outras palavras, o escritor não quer mais escrever histórias, mas sim criar tratados sobre a escrita, sobre a técnica, sobre as palavras, sobre o acúmulo de experiências. Mas, para falar em termos de subnível, a concretização desse nível requer o aprendizado de recursos de organização dessa informação acumulada. E nisso o grande professor foi Platão. E Filosofia é, propriamente, esse esforço de organização da informação. Mas a Filosofia Primeira, como chamada por Aristóteles, é um salto em que já não interessa mais a habilidade de onde se partiu, porque parece ser uma posição constante, qualquer que seja o caminho. Não sei se está no 1.4 ou 1.5, mas porei no 1.5.
1.5- linguagem anagógica: O símbolo do símbolo. A anagogia é usada para descrever um dos 4 modos de ler um texto sacro: o literal, o moral, o alegórico e o anagógico, como expresso na tradição cristã desde Dionísio Aeropagita e reexpresso por Dante. Essa classificação que fiz não nasceu desses trabalhos, mas sim do esforço de entender as situações que me apareciam -- mas fiz questão de tomar essa palavra de empréstimo, porque me parecia mais adequada ao nível 5. Tenho pouca capacidade de discernir o nível 5, mas me parece ser uma meditação sobre o "Um". A razão humana é capaz de conceber por imaginação ordem no caos. Primeiro ela participa de uma ordem, a sociedade, onde é apresentada aos graus hierárquicos (os subníveis de 1.2), mas o seu interesse profundo pode dirigi-la a conceber não só a ordem social, mas a própria capacidade de captar ordem num amontoado que lhe parece caótico a princípio (a ordem de uma habilidade). Uma vez participado dessa ordem (1.3), pode haver o interesse por aprender a ordenar (1.4). Essa capacidade, por sua vez, sobe mais um nível de abstração para perceber, de um lado, a própria capacidade humana de perceber essa ordem ou essa ordem como metáfora para permitir a ordenação de qualquer outra habilidade, metáfora essa que é, portanto, símbolo dessa capacidade. Quando digo "o Um", me refiro tanto a essa capacidade (chamada pelos gregos de nous) quanto a essa possibilidade que existe não só numa coisa, como em qualquer coisa, de ser vista de modo ordenado.
Os subníveis da linguagem anagógica dizem respeito a conclusões dessa habilidade. A única conclusão que eu reconheço até o momento é que quanto mais se deseja subir os níveis de razão, mais é necessário algo como uma "ascese", ou seja, uma concentração ou atenção que só pode ser obtida pela renúncia de outros interesses, de dar atenção a outras coisas. Assim, quanto mais vícios (vícios mesmo, cigarro, álcool, sexo, dinheiro etc.) menor a probabilidade de se predispor a esses graus de atenção, e, portanto, aos graus de razão. Isso não é uma questão religiosa, mas, ao contrário, a religião "nasce" numa pessoa através desse tipo de esforço.
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Nota: Em cada nível, a visão de mundo do sujeito se altera. Ou seja, ainda que ele transite de uma para outra através de alguma habilidade particular, ou de um conjunto de conhecimentos, quando digo que "sua razão muda", isso significa que não é apenas a sua posição naquele conhecimento específico, mas sim seu modo de enxergar a vida como um todo que se altera. Daí, por exemplo, há os frequentes embates entre pessoas cuja visão ficou acostumada ao nível 1.2 analfabeto e o 1.2 acadêmico, há ainda entre acadêmicos, pois um afirma que ou mundo é feito essencialmente de partículas (físicos), outro das relações entre as partículas (químicos), outro que tudo passa pelo filtro da linguagem, portanto tudo vem da linguagem (linguistas). Por sua vez, há os embates entre os níveis 1.2 e 1.3 como Bruno Tolentino na cultura brasileira (e como era comum até pouco tempo atrás) ou 1.2 e 1.4 como Olavo ilustra no Imbecil Coletivo. Carpeaux (1.4) não foi compreendido pela elite intelectual brasileira de escritores (1.3), o que o levou a ser rebaixado primeiro ao nível 1.3, depois ao 1.2 conforme a problemática em que foi sendo inserido no Brasil (conferir o ensaio do Olavo sobre Carpeaux, presente tanto na introdução dos Ensaios Reunidos como no Futuro do Pensamento Brasileiro, do Olavo).
2- modalidades de cultura
Fiz essa divisão principalmente ao tentar classificar os tipos de documentos que me apareciam. Era possível perceber que havia diferenças no estilo, mas sobretudo na função, no uso a que podiam ser aproveitadas. De modo geral, a visão que tenho é a seguinte: uma cultura normal, qualquer que seja, civilizada ou "tribal", possui dois modelos de cultura, a erudita e a popular. O contexto industrial, ou seja, o processo de desenvolvimento de novas tecnologias, em especial de comunicação entre grandes grupos, gerou a necessidade de desenvolver um novo modelo de cultura, espelhado do anterior, que é a cultura acadêmica e a pop. Ao final deixo uma nota complementando essa explicação. As explicações que faço dessas 4 modalidades é já considerando como elas podem coexistir harmonicamente no contexto atual.
2.1- cultura erudita: Ao que me parece é a principal das 4. Sem pensar propriamente no aspecto religioso (1.5), prefiro pensar no fato de que a ênfase da cultura erudita é o estudo por tema, em oposição à cultura acadêmica, que é estudo por área. Isso significa que não há propriamente uma metodologia para abordar um tema: ele requer, ao contrário do frio método, um calor proveniente do interesse genuíno, que move o sujeito a adentrar num tema e, pelo acúmulo de imagens, ideias, material, em suma, ter que criar ele próprio, ao longo da investigação, os métodos de organização da informação.
Na minha concepção, os Great Books, ou seja, os livros que formaram a civilização ocidental, são todos cultura erudita. Pode-se argumentar que foram feitos por "acadêmicos", sobretudo após o nascimento da Universidade, mas, como também o caso brasileiro, a formação acadêmica do autor em geral era só um pedaço minúsculo da sua produção. Frequentemente eram formados em Direito (Descartes, Leibniz) ou cientistas naturalistas (Pascal), mas o método de investigação não era no modelo acadêmico atual, que consiste em comentar a partir da autoridade dos outros sobre alguma coisa, mas sim era a criação de um comentário a partir da sua própria posição. O gênero literário próprio da cultura erudita é o ensaio, quando expressa as ideias de modo mais analítico, ou a arte, quando o expressa de modo simbólico.
O modelo que mais tomo de base para meditar sobre cultura erudita é pelo lado do ensaio, representado em especial por Câmara Cascudo e Olavo de Carvalho. Se uso os dois, apesar de haver muitos outros, é porque consegui estudá-los não só pelas suas obras, mas pelo efeito que tiveram, qual seja, a obra deles acaba se tornando um centro vital de onde surgem inúmeras outras obras. Eles compilam em si, em geral sob um tema maior, um com Cultura Popular, outro com Filosofia, uma grande quantidade de temas, bem ordenados dentro da sua proposta, de modo que sua obra se torna um centro capaz de gerar inúmeros frutos, quase como uma Universidade em si mesma. Como não compreendemos bem as relações entre os níveis 1.2, 1.3 e 1.4 de capacidade linguística, essas obras não possuem continuidade vital, apenas burocrática e, como elas vieram na passagem do primeiro paradigma (apenas cultura erudita e popular) pro segundo (as 4 modalidades), não soubemos como expandir nem seu conteúdo (1.3) nem sua forma (1.4), nem eles produziram numa metodologia capaz de ser verdadeiramente aproveitada pela academia (1.2) nem possuem autoridade histórica consolidada para serem reaproveitados mesmo sem essa metodologia (como os autores dos Great Books).
2.2- cultura popular: Não tenho documentação suficiente para saber se a cultura popular deriva da erudita, se tem com ela uma simbiose, ou como se dá. Sei que há momentos de influência, e que as duas formam um corpo próprio distinto do outro. Nesse sentido, cultura popular pode ser subdividido ainda em duas categorias: as culturas locais e as tradições populares. Cultura local é toda produção feita em um lugar, que pode ser artística ou ensaística -- em geral é feita por moradores, não tem muito detalhe ou esforço suficientes para serem considerados cultura erudita, mas delegam um depoimento local de muito valor pedagógico (se houver quem saiba usar) para os moradores da região. Já a tradição popular é, por exemplo, no caso nordestino, o cordel e o repente: eles não têm uma origem bem definida, nem são de um local específico, mas se tornam associados a uma região, conforme o estilo e proposta.
Conforme a minha pesquisa, a cultura local escrita é fenômeno em grande parte pós-anos 50, com Getúlio Vargas, em que houve uma ênfase na escolarização das regiões menos centrais. Ela nasce, em geral, de um interesse pela própria região, mas não há, na nossa cultura, uma compreensão da função pedagógica dessa documentação (mas ela existe). Tudo ocorre de modo esparso, e o ápice desse processo está no atual crescimento, em geral a partir de 2010, das Academias de Letras em cidades pequenas. Há um acréscimo da produção local, mas numa época em que a cultura pop tem muito maior domínio de interesse, o que torna, na prática, toda essa documentação inútil.
Já a tradição popular, que é propriamente a cultura popular, está praticamente encerrada, pois no novo modelo as pessoas são formadas pela cultura pop/industrial. A verdadeira cultura popular restante é em grande parte ignorada pela população (aqui em Natal tem o conhecido, mas nunca lido nem ouvido, Poeta da Passarela, Manoel Dantas, que trabalha vendendo cordéis numa passarela próximo da universidade e que divide dois shoppings, e é totalmente ignorado), e a pouca que ainda ganha alguma atenção é feita não dentro da tradição popular em si, sobretudo nos temas, mas sim feita por acadêmicos, mimetizando a verdadeira tradição popular, em geral para expressar suas preocupações sociais enquanto acadêmicos (nível 1.2), não as preocupações genuínas do povo ou da própria tradição popular (1.3 em diante). Não há, aqui, nem mesmo embate público, nem atenção nenhuma de nenhuma parte, até onde conheço, de modo que a tradição popular genuína pode-se dizer, na prática, já enterrada e esquecida. Seu último guardião foi Ariano Suassuna, mas sua obra não foi de cultura popular, e sim de cultura eruditíssima. E, mesmo assim, foi enterrada junto com a cultura popular. [Obs.: tem como ela voltar? Tem. Mas não há no horizonte visível essa perspectiva.]
2.3- cultura acadêmica: A cultura acadêmica enquanto tal é resultado do crescimento das universidades em função da necessidade de profissionais de 3º grau para dar conta da criação e manutenção do mundo industrializado. Engenheiros civis, eletricistas, mecânicos, arquitetos, bioquímicos, médicos, os professores de todos esses profissionais e das escolas para darem conta disso, além da pesquisa tecnológica e humanística correspondente, em teoria, a um esforço de lidar com a sociedade complexificada pela industrialização. Como nas indústrias, isso gerou uma divisão de trabalho, em que cada profissional acadêmico se torna responsável apenas pela sua área respectiva. Quando cresce mais ainda, da necessidade de distinguir os profissionais uns dos outros, há as especializações, portanto as sub-áreas. A nível de produção de conhecimento, isso gera um avanço como nunca antes visto na História, de captação de detalhes em cada um dos temas que anteriormente eram estudados, na terminologia atual, por "generalistas", ou por estudiosos de cultura erudita. A nível social, porém, esse surgimento e expansão da cultura acadêmica acaba por vencer em autoridade a cultura erudita, já que um bom pesquisador pode facilmente apontar falhas em detalhes de uma obra de cultura erudita, e isso remove publicamente a credibilidade pública -- e o oposto, ou seja, o autor de cultura erudita apontar os problemas da visão especializada, foi um fenômeno que existiu e funcionou, com Olavo de Carvalho, mas a falta de compreensão plena do quadro de produção cultural impediu o prosseguimento dessa tradição, que poderia gerar um equilíbrio em ambas as modalidades.
Existe a "cultura local universitária", que seria propriamente as questões de história e historiografia de uma universidade em particular, mas a "cultura acadêmica" é a produção na metodologia acadêmica desse novo modo especializado de produção. Também chamo esse modo de estudo por área (4.2) ou, em geral, explicação material (3.3), ou ainda do conteúdo produzido a nível de linguagem cultural ou profunda (1.2 e 1.3). A questão aqui é uma metodologia de estudo especializado. De modo geral, há a produção de artigos, que são como os ensaios da cultura erudita. Mas os ensaios são feitos para serem lidos e digeridos, além de, como já dito, não têm autoridade a não ser a do autor, de modo que as alusões, citações ou referências são feitas de modo menos rigoroso, porque são menos para dar autoridade ao material do que para sugerir aprofundamentos ao leitor interessado no tema. Já o artigo acadêmico, não: além da leitura ser só pela busca do resultado atingido no artigo, ele precisa se restringir à área em que o autor pertence burocraticamente, não podendo fugir de modo algum, porque, para ser publicado, passará por avaliadores da respectiva área; ademais, alusões são inúteis, igualmente um esforço artístico (no ensaio ocorre bastante, já que ele é irmão, por assim dizer, da arte), e as referências são obrigatórias para cada nova informação, porque ele todo só é artigo se remover a opinião do autor e colocar apenas a tradição de informações registradas disponíveis. O resultado desse método que, lembrando, é oposto ao modelo dos intelectuais anteriores ao século XX, é uma redução da criatividade, da capacidade de captar problemas da sociedade e discorrer, ensaiar sobre eles. Além de uma redução da velocidade de produção e do impacto social, porque o texto produzido não é legível e mesmo encontrável por pessoas fora da área. João Cézar de Castro Rocha, um acadêmico de Letras, produziu em 2010 uma crítica ao sumiço do debate literário no Brasil do século XX pra cá (Crítica Literária: Em busca do tempo perdido?), mas sua obra, apesar de ter um dos temas essenciais e principais do Imbecil Coletivo do Olavo de Carvalho, publicado 14 anos antes, teve efeito nulo, porque é um extenso "ensaio" feito ao molde acadêmico, ou seja, só legível por pessoas de Letras. Já o Imbecil Coletivo foi um estrondo cultural, mas hoje não teria como sê-lo, porque o meio de divulgação da cultura erudita que havia no Brasil do século XX, o debate nos jornais, não existe mais, e seu equivalente mais próximo, as discussões na Internet, além de ser de um modelo diferente (mais orais e visuais, em oposição ao modelo escrito dos jornais), pertence às gerações que já não fazem mais ideia do que seja os níveis de capacidade linguística 1.3 em diante.
Apesar do tom crítico do jeito que falo, a cultura acadêmica, como também já disse, não só serve para o avanço rápido do conhecimento, como também serve para corrigir os erros da cultura erudita. Num modelo saudável da sociedade contemporânea, seria necessário manter um "embate amistoso" (mas nem sempre com essa aparência) entre as duas modalidades de cultura, de modo que seja possível uma corrigir as imperfeições da outra. A cultura erudita vê o conjunto, e a acadêmica os detalhes.
2.4- cultura pop (industrial): Por fim, a cultura pop, que é a substituição moderna da cultura popular. Aqui eu encaixo toda a "produção industrializada", ou seja, feitas para grandes grupos, e em geral com pouca ou nenhuma relação com o ambiente de origem. Não dá para dissociar Harry Potter da Inglaterra nem Dragon Ball, Naruto ou Tenchi Muyo do Japão ou países asiáticos em geral, mas acima do local o foco dessas obras é atingir um público o mais amplo possível. Existe um modo predominante de produção de conteúdo industrial: formas musicais mais propícias (canção), formas narrativas (Jornada do Herói), associadas a uma esquemática simples, ou seja, em oposição à cultura erudita (música clássica, arte clássica), não há uma ênfase em meditar sobre essas formas eruditas e desenvolvê-las. Ao contrário, a cultura pop formou uma tradição em si mesma e as obras pop costumam ser respostas a essa tradição. No pop japonês, por exemplo, Naruto, One Piece, Digimon e inúmeras obras são respostas à Dragon Ball, e todas elas participam de uma forma narrativa da indústria japonesa específica para rapazes de 13-18 anos chamada Shounen; do mesmo modo, há as para garotas de 13-18 anos (Shoujo) e inúmeros outros gêneros, em torno do qual gira a indústria. No caso japonês há mesmo as obras "indie", ou seja, que imitam o modelo industrial, mas estão fora das formas mais padronizadas. Do mesmo modo, no "pop americano" 50 tons de cinza é uma resposta à Crepúsculo, e estes, por sua vez, fazem parte do gênero que podemos chamar de "histórias de vampiros para mulheres", onde também se inclui Vampire Diaries etc., e que faz parte de um gênero maior de histórias extraordinárias, onde se inclui também romances com zumbis (Sangue Quente), dentre outros. Do mesmo modo, enquanto na música clássica há as formas musicais, na música pop há os gêneros, como rock, pop ou reggae, que constituem a forma em que as obras são compostas.
Quando digo "pop japonês", "pop americano", "pop brasileiro" me refiro ao fato de que cada país costuma desenvolver sua própria indústria, apesar de que algumas ganham maior investimento e destaque global, como o americano, o japonês, o coreano e o chinês, e outros se mantém apenas dentro das suas fronteiras. Não há como negar o caráter popular da cultura pop, seja por ser alimento da população, seja porque, gostando ou não, o pop do país acaba por expressar as tendências de pensamento que circularão o respectivo país. "Brasil, o país do futebol e carnaval" vem do pop brasileiro que nos acompanhou entre os anos 50~2000; agora o pop do país, que cresceu, agrega figuras como Anitta e as derivações transexuais ou drag-queens (Pablo Vittar, Glória Groove etc.) e o funk como elementos mais destacados internacionalmente. Em geral, aquilo que se exporta não é a cultura local, porque esta só tem interesse mesmo ao local respectivo, ou à tradição popular, que também não vai muito longe, mas sim a cultura pop, com o que ela possa ter, como resquício, de cultura popular.
No modelo atual de cultura, a cultura pop gera os temas que circulam pela população, e que se sobrepõem majoritariamente à cultura local, em geral reservada aos velhos, que a receberam, já em poucas doses, por osmose, por viver no local. Dificilmente temas locais chamam a atenção, a não ser que se tornem tema da cultura pop, ou seja, fatos locais, por exemplo, que ganham a mídia nacional ou até internacional.
Um acréscimo importante é que esse modelo descrito acima diz respeito à cultura pop "analógica", ou seja, ainda não há de acréscimo a cultura pop da internet. Existe uma diferença. A cultura pop analógica, em geral formada pela dita "grande mídia" (tvs, jornais) formava uma roda de personalidades em torno dos quais circulavam as informações (os autores de novela, nas formas da globo, os atores, jornalistas etc.). E, fora disso, havia os personagens que tinham seus "15 minutos de fama". Eram o que hoje chamamos de memes, esses "pequenos talentos especializados" que chamavam atenção da mídia para uma rodada de reportagens, entrevistas, e que logo voltavam ao anonimato. A internet, ou seja, esse novo espaço que unifica todo o mundo ao alcance da mão em qualquer momento criou a possibilidade de que esses personagens de 15 minutos de fama construíssem uma nova camada de cultura pop, não mais formada pela "grande mídia", que podemos chamar de "grande mídia analógica", mas formada por uma "média mídia" ou uma "grande mídia digital", com suas próprias regras e espaço (a internet). Esse espaço é regrado a pessoas, memes e expressões que formam uma cultura pop em si mesma, apesar de frequentemente ser mesclada com a pop analógica. A pop digital é "mais popular" do que a "pop analógica", porém mais caótica, apesar de ferquentemente obedecer aos sucessos internacionais (sobretudo americanos), que são então traduzidos e adaptados ao modelo local. Esse pop também se separa conforme a língua e país. Há um pop internético brasileiro, um finlandês (finlandeses também são viciados em internet), um português etc..
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Nota: Assim, portanto, a cultura acadêmica é a produção do conhecimento especializado, mas sem a respectiva ênfase na presença diante da cultura (produção burocratizada, por assim dizer), e a cultura pop é uma cultura popular que não tem nenhuma relação com o local onde é consumida, mas, ao contrário, constrói uma mentalidade própria que pode ser totalmente oposta à do local e seu histórico.
Nota 2: Correlacionando esses 4 modelos com o tópico anterior, a cultura erudita e a popular só podem nascer verdadeiramente por pessoas de nível 1.3 em diante (mas pode haver embates numa sociedade entre pessoas de nível 1.3 com pessoas 1.2); já a acadêmica e a pop podem vir de pessoas 1.2, mas há ocasiões, mas são a exceção, do surgimento de obras que só podem ser feitas por pessoas de níveis 1.3 em diante. Na cultura acadêmica é até comum o surgimento de pessoas 1.3, são os especialistas mais fanáticos em sua área, e frequentemente se destacam mesmo midiaticamente; na cultura pop, casos como a Hiromu Arakawa (Fullmetal Alchemist) são uma amostra do surgimento de obras de nível 1.4 (!) em um ambiente inesperado.
3- especializações do interesse
3.1- totalizante
3.2- explicação formal
3.3- explicação material
3.4- habilidade
3.5- tema
3.6- domínio da vontade
4- modalidades de forma da pesquisa e produção cultural
Essa forma de divisão dos modos de pesquisa veio como recurso para tentar entender a diferença entre o material produzido na internet, o produzido por acadêmicos e o produzido pelo que chamo de cultura erudita (como Olavo ou Câmara Cascudo).
4.1- produção por tema: É quando a pesquisa gira em torno de um tema ou pergunta, independentemente da documentação que será necessário para trabalhá-lo. Assim, por exemplo, a produção por tema vai desde o simples relato de experiência, sem nenhuma referência além da memória, sua ou de outrém, até uma investigação que agregue inúmeras referências de áreas diferentes. No primeiro caso, chamo de cultura local (2.2); no segundo, de cultura erudita (2.1). Assim, Paulo Pavesi tomou um tema para si, a investigação da morte do seu filho, e desenvolveu-o até virar um baluarte da denúncia do tráfico de órgãos no Brasil. Seu estudo, porém, não tem a pretensão de ir além do seu próprio caso-base (seu filho), mas é revestida dessa investigação a mais. Assim, ele poderia ter ido além e tomado o tema em si mesmo como de sua responsabilidade, mas não foi o caso. Do mesmo modo, uma coisa é quando uma pessoa nos seus 60 anos de cidade pequena decide por relatar como foi difícil para ela passar pelas mudanças tecnológicas e sociais dos últimos tempos; outra é se ela tomar esse tema de base para questionar outras pessoas da sua geração, de gerações mais velhas ainda vivas, e mesmo de outros momentos da História em que tenha havido grandes mudanças em pouco tempo: no primeiro caso ela fez um relato simples, nos subsequentes, há um acréscimo cada vez maior de complexidade e universalidade. Assim se vê a gradação da cultura que chamei de popular (2.2) para a erudita (2.1).
4.2- produção por área: Aqui não é o tema o foco, mas sim a área em que ocorrerá a investigação. Há, certamente, algum tema a ser pesquisado, mas os recursos da pesquisa -- métodos de investigação, referências de base, até estilo de escrita -- são regidos por uma área e precisam ficar restritos a ela. O modelo de base para esta modalidade é a produção acadêmica. O gênero de base aqui não é o relato, mas o artigo acadêmico. Assim, mesmo no caso de escrita de ensaios, mas feita por acadêmicos, costuma estar regidos pela área em que ele pertence. Assim, por exemplo, os livros de Dawkins são indissociáveis da Biologia, os de Jessé Souza da Sociologia, os de Sidarta Ribeiro ou Miguel Nicolelis da Neurociência, e assim sucessivamente, conforme a área.
A produção por área pode servir de alimento para a produção por tema, mas de modo geral a produção por tema não tem valor para a produção por área, podendo, no máximo, servir enquanto inspiração geral. Um estudioso interessado em produzir conforme a área precisa adentrar na documentação disponível e rechear-se dessa documentação para poder compor um documento que remova sua posição de autoridade para distribui-la conforme a autoridade dos autores interessantes para demonstrar o ponto que se deseja dentro do tema escolhido.
4.3- produção por proposta: Esta pode-se dizer que nasce com a mídia, na medida em que cada jornal, por exemplo, como cada empresa, delineia sua proposta, que é também seu diferencial em relação às outras empresas. Seja no aspecto mercadológico, seja no aspecto político, o fato concreto é que há uma delimitação de uma proposta a partir da qual os vários produtos daquela empresa deverá obedecer. Mas no modelo analógico de mídia, o dono da proposta e os executores frequentemente eram diferentes, como no caso das grandes mídias jornalísticas, em oposição aos jornais menores, feitos por uma só pessoa ou por um pequeno grupo que garantia uma maior homogeneidade entre a proposta e a execução. A "produção por proposta" propriamente dita, do modo como entendo, nasce da possibilidade desses "jornais pequenos" ou dessa "pequena mídia" conseguir se manter em si mesma, assim como os artistas de 15 minutos de fama, que adquiriram um espaço para se manterem na lembrança de uma quantidade suficiente de público de onde possam tirar um sustento.
Assim, a internet gerou, como a cultura pop digital, a "pesquisa por proposta". Há mais detalhes em Nota. A pesquisa por proposta significa a formação de um modelo de intelectual cujo foco não é nem um tema em si nem uma área acadêmica, mas sim a proposta na qual ele deseja se estabelecer e, frequentemente, vender o seu produto. É uma imitação do modelo mercadológico. Se penso, por exemplo, em booktubers, estes constroem uma proposta para o seu canal, e toda a sua leitura de livros, resumo e modo de exposição, incluindo o tempo para a leitura e pesquisa, precisa obedecer às regras instituídas pelo canal, independentemente da qualidade do processo. Mais ainda, como a pesquisa vai sendo regida pela proposta, de um lado, mas com as flutuações de interesse do público, ela não mantém estabilidade suficiente para ter um tema bem delineado, de modo que o que de fato permanece fixo não é tema nenhum, nem área nenhuma, mas sim a proposta do booktuber (ou afim), do qual ele não pode fugir, a não ser que deseje criar uma nova proposta, possivelmente com um novo público (o que na maioria das vezes não é vantajoso).
Nota: O século XX viu a passagem do estudo por tema como predominante na produção cultural para o estudo por área. No meu entender, é isso o que Ortega y Gasset denuncia na "Rebelião das Massas", e é disso que fala Otto Maria Carpeaux no seu ensaio "A ideia da Universidade e as ideias das classes médias". É também nesse contexto que surge o "intelectual orgânico gramsciano", cuja causa, ao que me parece, não é uma ideologia, mas, ao contrário, a possibilidade do intelectual por área e seu espalhamento conforme a necessidade da sociedade industrializada. O Imbecil Coletivo do Olavo pode ser entendido sobretudo como a disputa do intelectual por tema em oposição aos intelectuais por área. Porém, mal havia tido uma descrição suficiente da diferença entre esses dois modelos de intelectuais, quando surgiu, de chofre, o terceiro tipo, que é o intelectual por proposta. O "fenômeno das fake news" só é possível pelo espalhamento desse estudo por proposta, que cria um debate paralelo distinto do que vinha se consolidando anteriormente entre o intelectual por tema e o por área. Assim, os últimos anos viram uma dança complexa, sobretudo concentrada na figura do Olavo, que era um intelectual por tema que usava dos meios da internet, parecendo um intelectual por proposta. Essa dança foi muito mal elaborada e compreendida, mas seu registro pode permitir que venhamos a entendê-la melhor no futuro.
Nota 2: Se O Imbecil Coletivo foi a batalha do intelectual por tema contra o intelectual por área, Contra a Vida Intelectual, do Ronald Robson, é a batalha do intelectual por área (apesar do Ronald Robson estar entre o intelectual por área e o por tema) contra o intelectual por proposta. É, do meu ponto de vista, um prolongamento dos esforços que a Universidade já faz para rebater o surgimento do influencer, mas, como no caso desta, é uma batalha impossível de vencer, porque a produção por proposta, como a cultura pop digital, é muito mais próxima da população, e mais acessível e compreensível, de modo que as críticas academicizadas acabam perdendo popularidade e sendo visto como excessos pedantes, mais do que uma crítica séria. Também pelo fato da incompreensão do fluxo de produção cultural, o que impede os intelectuais por área de compreenderem, seja a sua função, seja a função do intelectual por proposta. É preciso notar, afinal, que os 3 intelectuais são úteis na sociedade, mas cada um cumpre uma função distinta.
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Tenho ainda outras chaves, mais específicas, sobre tipos de documento cultural, sobre tipos de conteúdo etc., mas essas estão em rascunhos esparsos e não os atualizo há um bom tempo, então vou deixar por ora só esses daí.
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